Afastou vagarosamente as cortinas que impediam a luz de entrar, protegeu os olhos dos raios do sol e em pouco tempo se acostumou com eles. Abriu a porta e pensou naquele instante, como agüentou ficar longe da luz tantos anos? Respirou fundo, olhou para o céu e deixou que o claro e o azul entrassem em seu apartamento e removesse o odor e o frio da solidão. Olhou para baixo e percebeu que a cidade estava agitada, pequenos mundos transitavam pelas ruas. Mas, excluiu de sua mente a individualidade das pessoas e focalizou apenas a sua.
Hoje ela faria seis anos que não via o mundo, se trancou em seu apartamento e rendeu-se a uma angustia particular e uma estranha obsessão pelo escuro e a vontade de dormir. Apagar de sua mente lembranças, adiar responsabilidades e não tomar decisões, foi tudo que quis. Por isso, trancou-se na tentativa de ser esquecida e de esquecer.
Durante esses anos quis algumas vezes sair de casa, retomar sua vida, recomeçar. Tentou, mas foi pior. Cada fracasso deixou seu apartamento mais escuro e sua porta mais trancada.
O chão estava sujo, seus cabelos também. Havia vestígios de beleza em seu rosto, mas sua aparência era péssima, igual ao seu coração. Nesse instante seus sentimentos se confundiam entre cumprir a sentença que ela mesma impôs, por algo que julgava ter sido o seu maior erro, ou permitir que o acaso mostrasse significado em ter sobrevivido a tantos fracassos, a tanta escuridão. Para ela a resposta era óbvia, não havia razão alguma para continuar fingindo, lutando, sobrevivendo, tentando. Tudo que ela mais queria era parar. Ela quis parar antes. Antes de tudo se perder.
Imortalizar algo que um dia acabaria era impossível. Mesmo assim, ela se culpou por não ter conseguido. Foi algo que fugiu do seu controle, algo inesperado por ela. Mas, isso não tiraria dela a culpa por ter acabado. As historias tomaram rumos diferentes do que ela havia planejado, era inevitável que isso acontecesse.
Mas agora ela estava ali parada, com os pés descalços, deixando a luz entrar. Fechou os olhos e seus pensamentos atormentaram com alguns medos de fracassar novamente, abriu-os rapidamente. Então algo inesperado aconteceu. No meio da selva de pedras, enquanto pisava o chão frio e sujo da varanda de seu apartamento, observou uma borboleta que voava perto do seu rosto. O vento assanhou os seus cabelos, mas isso não a incomodou. Debruçou-se sobre a marquise e viu lá de cima toda a vida que existia, da qual fugiu por tanto tempo.
Os seus medos ainda estavam ali, secretamente dentro dela. Mas, sentia que deveria tomar uma decisão, deveria dar uma chance ao acaso. Talvez, pudesse ganhar algo melhor do que o que havia perdido. Acreditar nisso exigia fé, no mínimo esperança. E isso ela já havia perdido há muito tempo. Precisaria, então, que alguém lhe ajudasse e forçasse a tomar essa decisão. Mas, quem?! Ela não tinha, absolutamente, ninguém.
Trancada e afastada de todos, depois de anos, nada poderia sobreviver. Nem ela, nem seus sonhos, nem sua beleza. Mas, ao abrir a única porta que existia, fez com que a luz entrasse novamente e isso lhe trouxe uma nova companhia. A borboleta. Era tudo que ela precisava.
Ela soltou os braços, procurou a postura, puxou a respiração e parou. Ficou ali parada por alguns segundos sem respirar, sem pensar em nada. Sentiu a suavidade da borboleta que acabara de pousar em seu ombro esquerdo. Virou a cabeça para este lado, lentamente abriu os olhos e com ele um sorriso. Suspirou e percebeu que a borboleta não voou assustada, algo finalmente começava a dar certo para ela. Então percebeu que durante anos se puniu por ter perdido algo que julgava lhe fazer bem, mas agora recebera a absolvição.
Aquela borboleta trouxe a vida novamente para ela, limpou a sujeira, resgatou sua auto-estima, trouxe luz. Ela agora tinha alguém, tinha um motivo, uma razão, uma esperança. Ela não precisava mais correr atrás do inalcançável, pois tudo que precisava havia pousado em sua vida sem nenhum esforço.
Não sabia direito ainda como agir, nem o que fazer daquele dia em diante. Mas deixou que a borboleta a guiasse. Seria a primeira vez que isso aconteceria, sentia que a partir dali tudo iria mudar e ela estava ansiosa por isso.